Durante a sessão de abertura da Gamescom Latam, Carolina Caravana – vice-presidente da Abragrames, associação brasileira de games – disse que a história da indústria de games do país agora seria dividida em dois períodos: antes e depois de 2024.
O ponto de virada? O adopção de um novo quadro jurídico em Maio que redefine os videogames aos olhos da lei, abre novos incentivos para empresas de jogos e cria oportunidades adicionais para investimentos, entre outras coisas.
Por mais árido que “um novo arcabouço legal” possa parecer, a empolgação pelo seu impacto na indústria local de jogos é palpável quando você fala com desenvolvedores brasileiros, com o termo “revolucionário” usado com frequência.
“Estamos chamando de fase dois da indústria brasileira de games”, diz o presidente da Abragames, Rodrigo Terra. “Já tivemos a briga de chefes, agora temos o próximo nível.”
Eros Silva, da Apex Brasil, acrescenta: “Esse arcabouço legal abre novas perspectivas quando você tenta ser um lugar seguro para as empresas, para o governo entender o que é a indústria de jogos e um lugar seguro para os investidores virem ao Brasil.
“Este tipo de enquadramento jurídico [is] tentando descartar mal-entendidos sobre o que são empresas de jogos ou o que são empresas ruins.”
A estrutura significa que as empresas agora podem ser definidas como um negócio de videogames em vez de uma ’empresa de software que faz videogames’. Isso significa que elas terão seu próprio número de código dentro da CNAE (Classificação Nacional de Atividades Econômicas), e também regras tributárias diferentes em comparação a outros negócios de software.
“Agora temos a oportunidade de ter estados brasileiros olhando para os jogos de uma perspectiva econômica”, explica Terra. “Muitos outros países estavam fazendo isso há dez, 15 anos: Reino Unido, França, Alemanha, Estados Unidos, até mesmo a Coreia do Sul. Esses governos estavam criando [hubs]incentivos fiscais, alívio fiscal e operações que ajudariam as empresas de jogos a ter um melhor desempenho.”
Os jogos também foram classificados em “cultura”, abrindo novos caminhos para subsídios e financiamentos. Uma linha foi até mesmo traçada entre videogames e jogos de azar ou títulos de apostas esportivas, tornando mais fácil para a indústria se diferenciar desse setor.
Este é o passo mais significativo para o setor de jogos brasileiro desde que foi reconhecido pelo governo como uma indústria genuína em 2003. E a estrutura é o resultado de uma longa campanha travada por órgãos comerciais e desenvolvedores.
“Passaremos cerca de dois anos implementando tudo, mas quando estiver concluído, acho que teremos o melhor lugar do mundo para começar e trabalhar em uma empresa de jogos”
Rodrigo Terra, Abragames
Thiago de Freitas – CEO e fundador da Kokku, um dos maiores estúdios do Brasil – fez muito do lobby durante seus anos trabalhando diretamente com o governo brasileiro como parte da Comissão Nacional de Cultura. Muito do trabalho que foi feito na estrutura foi sobre identificar “o que poderíamos fazer para tornar a indústria brasileira mais saudável para [developers]”, ele diz, além de abordar uma disparidade fundamental no desempenho do mercado.
“Somos um dos dez maiores países quando se trata de gastos com jogos, mas não estamos nem perto disso quando se trata de gerar receita para a indústria de videogames aqui”, diz De Freitas. “Agora estamos finalmente em uma posição onde podemos obter investimento e oportunidades reais para acessar equipamentos que têm sido tão difíceis para nós acessar, como kits de desenvolvimento, kits de teste.”
Conforme discutido em nossa matéria de abertura da Brazil Games Week ontemas limitações contínuas nas importações de tecnologia tornam mais difícil para os criadores trazerem kits de desenvolvimento de console para o país – daí os estúdios locais desenvolvendo principalmente para PC e dispositivos móveis. Terra nos conta que as equipes esperaram seis meses para que as autoridades liberassem os kits de desenvolvimento que estavam presos no aeroporto, mas espera que isso seja resolvido em um futuro próximo.
De Freitas acrescenta que a distinção entre jogos e outras indústrias de tecnologia ou entretenimento também será uma vantagem crucial: “Agora temos uma oportunidade para que os videogames sejam vistos como uma indústria real, não apenas parte de alguma outra indústria como cinema ou tecnologia. Isso ajudará a construir as políticas certas que são apenas para a indústria de videogames quando se trata de investimento, trazendo equipamentos e garantindo que não estamos sendo taxados porque esse equipamento não é feito no Brasil. Ter esse tipo de investimento e todos os incentivos fiscais, será uma virada de jogo para o Brasil.”
Como vimos em muitos mercados no mundo, como o Reino Unido e o Canadá, a introdução de incentivos fiscais pode ser uma verdadeira bênção para a indústria de jogos, ajudando a financiar estúdios e projetos que, de outra forma, teriam dificuldades. De Freitas acrescenta que, como muitos dos maiores estúdios do Brasil, incluindo o Kokku, são construídos em torno de serviços de trabalho por encomenda, os incentivos fiscais podem ajudá-los a pagar melhores salários e, assim, oferecer equipes maiores e mais experientes aos seus clientes.
“Se você paga impostos muito altos aqui por causa das leis trabalhistas, não pode ser tão competitivo e não pode pagar o tipo de salário que precisaria para competir com empresas europeias e norte-americanas”, diz ele.
Chris Bergstrasser, diretor de estratégia da nova controladora britânica da Kokku, a OV Entertainment, acrescenta que as mudanças na estrutura tributária também facilitarão o investimento de empresas estrangeiras em estúdios brasileiros.
“No passado, as empresas brasileiras tinham que fazer contabilidade de caixa em vez de provisões, e por isso você via empresas relatando prejuízo após prejuízo e então um lucro mágico no final”, ele explica. “Isso é prejudicial para uma empresa ser capaz de reinvestir em si mesma e continuar esse caminho de crescimento, e como um estranho tentando investir, torna muito difícil para nós saber onde investir. Tudo o que podemos ver são empresas perdendo dinheiro e então algo acontece, mas não temos certeza do que está acontecendo.
“Isso mudou muito a ponto de agora vermos investidores estrangeiros — inclusive eu — olhando para o Brasil com outros olhos.”
Julianna Brito comanda a Indie Hero, uma aceleradora para estúdios independentes brasileiros, que discutiremos mais amanhã. Ela diz que, antes da estrutura legal, os indies brasileiros eram essencialmente “invisíveis para estrangeiros”, acrescentando que a capacidade de registrar uma empresa de jogos contribuirá muito para torná-los mais acessíveis a parceiros e investidores.
“Uma das primeiras coisas que os investidores vão fazer quando chegam a um país que não conhecem é ver quantas empresas existem”, explica ela. “Porque [if] existem muitas empresas que eles [think]’Ah, esse mercado é desenvolvido aí, porque tem muitas empresas’.
“Conversei com alguns investidores alemães uma vez, eles vieram pesquisar o Brasil, e disseram: ‘Não, não há empresas de jogos no Brasil, não há dados de mercado, ninguém vai investir lá’. Mas agora não somos mais invisíveis para os estrangeiros. Eles verão que existimos como um mercado. E isso lhes dará mais segurança para também trazer fundos privados.”
Mas Terra, da Abragames, alerta que introduzir incentivos fiscais não é uma tarefa fácil. Lobistas da indústria de games do Brasil aprenderam muito com a jornada para isenções fiscais vistas no Reino Unido, Alemanha, França e Bélgica, ele diz, acrescentando que a atual estrutura tributária do Brasil acrescenta barreiras adicionais.
“Do nível federal e estadual, nossa tributação aqui é realmente uma bagunça”, ele diz. “Eles são [making changes] para estar mais perto do que a Europa e os EUA fazem para bens de consumo e empresas de produtividade. A Lei de Renovação Tributária que será implementada em 2030 simplificará muitos dos nossos impostos.
“Ter essa conversa sobre alívio fiscal agora pode ser algo que se tornará obsoleto em dois ou três anos e precisaríamos fazê-lo novamente. Então, ninguém está falando sobre isso ainda. Levará anos para falar sobre isso. Precisamos descobrir outras maneiras de criar mais incentivos e atrair mais investimentos de [the] fora.”
Embora as isenções fiscais possam não estar no horizonte imediato, os desenvolvedores brasileiros estão interessados em explorar outras maneiras de obter novo acesso a financiamento e investimento. De Freitas, da Kokku, diz que as taxas de juros no Brasil são tão altas que é “quase impossível” para os estúdios obterem um empréstimo. Esta é apenas uma das razões pelas quais ele espera que o governo ajude a encontrar novas maneiras de investir em empresas de jogos.
“Não existe uma indústria forte se você não tiver relacionamentos realmente próximos com o governo e se ele não apoiar o crescimento da sua indústria com incentivos fiscais, subsídios, tornando o ambiente para o empreendedorismo menos complicado e mais foco em ensinar os jovens a entrar nessa indústria”, diz ele.
“O Brasil tem uma população grande, mas ainda não temos educação adequada para trabalhar em jogos AAA, por exemplo. Para mudarmos isso, precisamos começar a incentivar mais empresas a investir no Brasil, e para que isso aconteça, elas precisam ver um ambiente mais saudável para que saibam que é seguro para elas colocarem seu dinheiro aqui. Então veremos mais Kokkus aparecendo aqui.”
Brito acrescenta que, assim como os independentes têm sido invisíveis para parceiros e investidores estrangeiros, eles também têm lutado para ganhar a atenção do governo.
“Toda vez que íamos falar com [the government] sobre financiamento, eles diriam ‘Quem é você? Você não existe, não existem empresas.’ Agora podemos existir e dizer: ‘Ei, existem 1.200 empresas de jogos no Brasil que estão fornecendo 20.000 empregos, e precisamos esse.’ Na verdade, como comunidade, podemos trabalhar com o governo em diversas áreas para obter projetos específicos [going].”
Isso não quer dizer que o apoio do governo tenha faltado antes dessa estrutura. Publicaremos nossa entrevista com o Secretário de Estado de Cultura, Economia Criativa e Indústrias de São Paulo no final desta semana, que discute como o estado está auxiliando a indústria de games, enquanto Silva, da Apex Brasil, relata que já há programas de financiamento em vários estados brasileiros.
“Agora temos uma oportunidade para que os videogames sejam vistos como uma indústria real, não apenas parte de outra indústria como cinema ou tecnologia”
Thiago de Freitas,Total
O impacto total da estrutura levará anos para ser compreendido, mas, por enquanto, os desenvolvedores brasileiros estão confiantes de que ela lhes dará uma vantagem no cenário global. Terra até a descreve como a “mais contemporânea e moderna [games] legislação do mundo.”
“Os governos precisam colocar as coisas em caixas, e em qual caixa você coloca os jogos?”, ele diz. “Estava sob software, e agora é cultura ou tecnologia? Não, são os dois. Jogos são jogos. Não pode ser dividido. É a primeira vez que uma lei tem esse entendimento.”
Isto é, claro, apenas o começo. Com o projeto de lei para o arcabouço legal aprovado em maio, agora vai levar algum tempo para o governo implementá-lo. Este trabalho já começou, com os grupos de trabalho interministeriais que vão lidar com isso sendo organizados atualmente.
“Acho que levaremos cerca de dois anos implementando tudo, mas quando estiver concluído, acho que teremos o melhor lugar do mundo para começar e trabalhar em uma empresa de jogos”, diz Terra.
Olhando mais adiante, Silva, da Apex Brasil, espera que a estrutura permita que a indústria brasileira de jogos do futuro se diversifique ainda mais. Além dos desenvolvedores de jogos tradicionais, há estúdios dedicados à publicidade de jogos, bem como as empresas de trabalho por encomenda e serviços mencionadas anteriormente.
“O jogo vai mudar para o Brasil nos próximos cinco anos”, ele diz. “Vamos ver as pequenas empresas sendo investidas, criando mais empregos, ajudando a economia e trazendo mais dólares para o Brasil.”